sábado, 17 de dezembro de 2011

Introdução

Eu cheguei contra o sol, que caminhava pra uma manhã mais clara. Trazia comigo cadernos de conversas com amigos e discursos de mendigos, de quando eu me sentava nas praças e ouvia os carros passando. Tive a impressão de que uma brisa mais forte me levaria pra longe outra vez, mas era tarde demais, porque eu já havia chegado. Não lembro os nomes nem os segundos que levei pra perceber que, embora tivesse caminhado por boa parte de São Paulo, eu não havia chegado a lugar algum, e agora, o filho pródigo retornava para o futuro de um apocalipse.

É isso mesmo, aquele velho clichê: o pior ainda estava por vir...

Eram dez, onze, ou duas, talvez, horas, quando cheguei a pisar no chão descascado dos restos da rodoviária. Onde eu ia não precisava carro, apenas passos lentos demais. Talvez boa parte dos velhos que eu cumprimentava aos sete tivessem ido para sempre sabe Deus pra onde. Me toquei que alguns moleques me olhavam, enquanto passavam com suas bicicletas, indo em direção à casa que, a partir da minha maioridade, a boca de fumo da cidade. Fodam-se as crianças.

Na minha velha rua, meu pai era um rei de um extremo, um primo distante, de outro, e os homens atarracados que nadavam em café torrado bamboleavam pelas portas das casas até uma lojinha de produtos rurais. A enorme casa de uma paixão de criança se erguia por trás. Ou seria de um velho parente morto a tempos? Eu nem sabia mais. Me perdi demais, sonhei demais, e nunca pretendia voltar.

A doença é um fator essencial na reunião de uma família. Um câncer, então, era o abraço apertado que os pais esperavam dar nos filhos desaparecidos. Meu pai esperava no alpendre, com seu hollywood preto, versão gold, sei lá. Carrancudo como sempre, coçava a sombrancelha, mudo, e só se levantou para me olhar quando meus tenis chutaram seus sapatos. Era a mesma coisa quando pequeno, e eu não sabia chamar a atenção.

O povo estava bem, ele dizia, e o cachorro havia morrido por causa da febre do carrapato. A mesma que matou os outros dois cachorros da minha adolescência. Ele parecia sozinho em casa. Por muito tempo teimou em não sair, até que eu o convenci a viajar. Agora, feitas umas cinco viagens com a minha mãe, meu pai amargava não ter tanta lembrança boa. Em muitas viagens tornava-se fúria pura, porque não podia fumar aqui ou lá. Ele envelhecia com a cidade agora, e ninguém podia fazer nada.

Sua mãe foi no mercado, não tem almoço. Era a minha avó falando: não tem comida moleque. Sentei na cozinha, tomei café e comi um pedaço de pão. O da padaria ao lado, continuava duro como sempre fora. Resolvi sair e encontrar a mãe no mercado, era bom que continuava o caminho até os tios, e já via todo mundo junto de uma vez.

Eu sempre fazia o caminho da casa do meu pai pra casa dos meus tios com a cabeça baixa. O ar que sufocava, e eu não gostava de dizer oi pra quem falava mal por trás de mim. Sempre falaram, até se esquecerem quem eu era. Seria a barba? Os meus óculos? Seria a aparência cansada que fui buscar na capital?

Meninas sorridentes compravam balas no mercado, a dona sempre falando da vida dos outros, e a mãe lá no fundo escolhendo carne. Fui abraçá-la e ela ficou muito satisfeita. Assim conversamos um pouco, enquanto o açougueiro relembrava a época das farras, as quais eu nunca estava presente, claro. Disse pra mãe que já chegava em casa, que ia ver o povo. Mais uns passos, e eu estava na casa dos tios. Sentia aquele cheiro de alho na panela, de todas as manhãs que passei lá, esse cheiro permaneceu, porque era de um tempero caseiro, mas o que importa isso?

Meu tio havia se escondido por trás de pilhas de livros que acumulou ao longo da vida. Agora, aposentado e com os filhos crescidos, desperdiçava as manhãs entre leituras filosóficas depressivas demais pra se contar num bar. A diabetes já havia lhe feito refém, e agora o café que ele tomava era amargo, como se sempre quisesse despertar de algo. Batemos papo, e ele contava que os meninos haviam mudado de cidade, um pra Cássia, casado e com uma grande prole, e o outro estava como que um ermitão na fazenda da família. decepção amorosa e poesia demais, dizia o tio. A tia estava ocupada demais pra bater papo, mas me cumprimentou. Logo se desentenderam os dois, brigas típicas do casamento, e eu resolvi voltar pra casa.

Cabelos dourados na sombra suave do portão, foi o que vi, mas não reconheci de início. Logo um homem forte, a sombra de meu outro tio, veio me saudar. Nunca nos falamos, eu pensei, mas ele era só sorrisos pra cima de mim, e a figura dos cabelos dourados nem sequer ergueu o olhar pra me encarar. O primo disse que tínhamos que botar a conversa em dia, era hora, era hora, ele dizia, e faz tempo que a gente não se vê, conhece a minha esposa?

Eu não sabia de porra nenhuma, que primo era aquele que nunca encostou em mim e agora dava tapas nas minhas costas? De repente a moça me olhou, olhos escuros demais para aqueles cabelos loiros. Logo eu estava na sua casa nova, de esquina, esperando sentado o almoço.

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