Madrugada e Manhã

Seus cílios, longos cílios, despertavam em todos a mórbida curiosidade, naquela madrugada negra, pregando uma insensata castidade, e eram tão negros e profundos seus olhares abissais. Profundas covas em meu rosto eles geraram, e tão imortais! Ninguém ousou tão longe, nem tão perto de você chegar, quando eu, trôpego e ébrio, perguntei se do seu lado poderia sentar. Você não avisou, naquele instante, de nenhuma angustia contraída, mas percebi, dentro da sua boca, uma fúria oprimida.

Pedi teu beijo, e teu perdão. Depois jurei que estava são. Teu sorriso me disse não, mas o seu corpo estava em prontidão.

A madrugada ainda se iniciava, enquanto eu, pleno, te beijava. Talvez o ato te consolasse, talvez fosse forma de vingança, mesmo que outros largasse, a mim convidou para a tenebrosa dança, e eu persuadido, deitei-me em teus pensamentos, detive nossos corpos, em breve, sonolentos, e disse: sigamos o vento...

Ao longe nos perdemos, na escuridão urbana e marginal. Aonde íamos, ainda não sabia, mas dali surgiria nosso balé carnal. Em qualquer muro da cidade, a chuva quase se derramando, sobre teu busto, tão inchado, e revelando o quanto estava suspirando. Antes da chuva, nos amamos. Depois da chuva, nos despedimos. Ao andar talvez alguns metros, olhamos ao mesmo tempo para trás e sorrimos.

Não dizia adeus o seu olhar, mas o que dizia também não posso adivinhar. Meu olhar não sugeria paz porque daquela guerra eu queria mais! A manhã chegou, dizia o leiteiro. A padaria estava aberta, eu li em algum letreiro. A madrugada, com sua maquiagem pesada, foi-se embora, misteriosa e ressaltada. De manhã, encontrei meu aconchego, no teto de minha cama, tal qual vampiro morcego. A manhã logo se dissiparia, e a tarde de sol me sorriria, e a ela então eu responderia:

Vá tomar no cu

Gargalhadas, aplausos, as cortinas se fecham.